O Barbeiro
O BARBEIRO
Rogério Martins Simões
Maria.
Espero que ao receberes esta carta estejas bem que nós por cá vamos na graça de Deus.
Recebi a tua última carta, onde dizias palavras lindas, como só tu as sabes dizer. Com ela vinha a senha para levantar o cabaz das mercearias que nos mandaste pela camioneta.
Já recebemos a encomenda, estava tudo bem, mas escusavas de te incomodar.
Aqui na terra tudo vai como no costume.
A cabra da Ti Rosário entrou na horta e foi dar cabo da vinha do tê pai.
Ouvi dizer que o Ti Chico fugiu para França. Que raio é que deu ao “home” que tinha aqui tanto mato para roçar.
O Zé do fundo do lugar, coitado, é que não teve a mesma sorte:
A família dele está de luto!
Morreu de uma bala ao atravessar a fronteira. Mas esse, coitado, não tinha aqui nada para comer. Agora que vai ser dos filhos dele. É assim! Temos de nos conformar.
Maria! Contaram-me que estás apaixonada e que até já lhe escreves cartas e que és uma “sem vergonha”
Vê lá, que eu nem quero acreditar.
(Aqui na terra são muitas as mexeriqueiras)
A TI Aninhas, que é cá uma coscuvilheira, pediu ao primo, que trabalha aí em Lisboa, para descobrir se era verdade.
Sabes lá: o Ti Manel da estiva, que é um magano, roubou a carta que escreveste ao teu namorado.
Maria nem sabes a vergonha por que estamos a passar. Ainda se fosses um rapaz... mas logo uma menina tão bem educada que fez a comunhão e tudo.
Maria! Aqui vai uma cópia da carta que o barbeiro copiou. Vê lá se foste tu que a escreveste pois quero desmentir o povo.
Desculpa a letra mas o Ti António, barbeiro cortou-se na navalha.
Por hoje não tenho mais para te dizer. Espero a tua resposta na volta do correio.
Beijos da tua mãe
Maria Desculpa a letra e não ligues – tudo vai passar.
Ouvi dizer na Rádio Moscovo que a PIDE vai ser corrida pelos comunistas e que as mulheres vão votar.
Por favor queima a carta e manda-me um frasco de “Pitralon” que depois pago.
Este que se assina
António Barbeiro.
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
Rogério Martins Simões.
P.S:
Estes desenhos da alma ficcionados foram construídos a partir de um comentário que escrevi diretamente a um texto lindo de amor, que a Amiga Maria do Cumplicidades escreveu no seu blog “Cumplicidades Partilhadas”
Mas a Maria já respondeu! E escreveu à sua mãe uma linda carta.
Afinal porque estava na Cidade e não se preocupou com as “linguareiras”
-Maria esqueceste o “Pitralon” para a barba que o Ti António Barbeiro pediu.
Mas o bom António quando a carta chegou já não a leu.
Resposta da Maria na volta do correio
Mãe, Sim estou apaixonada. A carta que te chegou às mãos, minha querida mãe, fala de um amor imenso, puro e que me faz tão feliz. Por isso minha mãe te peço, fica feliz por a tua filha conhecer o amor, por a tua filha se viver em felicidade.
Sabes mãe, não conheço outra forma de viver que não através dele, e isso minha mãe, aprendi contigo. Por isso te peço, ignora o povo, e não sintas nunca vergonha. O amor não se vive dela. Nada do que consta nessa carta são sem vergonhas, minha mãe.
Lê, repara em cada palavra, em cada sentir que elas revelam, não é isso que é a vida minha mãe?
Não é assim que deveríamos todos viver, no amor? Acredito que se todos se vivessem nele, saberiam compreender, e com toda a certeza o mundo seria muito mais humano, estariam todos muito mais disponíveis para os outros. Não concordas? Não desmintas, mãe. Confirma que foi a tua filha que a escreveu. E não ligues à voz do povo, o importante não é que saibas que a tua filha, está bem? Da filha que te ama... Enviado por Maria Branco
O narrador volta a chamar pelo poeta
Aos Homens grandes
O António que escreveu as cartas para a Maria era um homem notável: Sendo barbeiro de profissão, era “Médico Enfermeiro” nas horas vagas.
António foi buscar o saber nos velhos livros de medicina, e porque era letrado – poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever – lia e escrevia as cartas do povo que não sabia ler nem escrever.
Mas o António “Barbeiro” gostava de ouvir!
(Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!)
E mal tarde tardasse a noite, pé ante pé como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho e sintonizava de novo a Rádio Moscovo.
António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e, no silêncio das quatro paredes, se a telefonia emitisse uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não se ouvir:
- Não viesse por ali algum “bufo” para o denunciar ou algum agente da polícia política para o levar.
Mas o “Barbeiro” que sabia tanto… procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam.
Foi assim que ouviu dizer, aos comunistas, que iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar…
Talvez por isso o António, barbeiro de profissão; e médico enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia “abusivamente” em entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas.
Certa noite de intensa tempestade o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo!
Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém!
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
À Maria Branco o meu agradecimento por completar este diálogo.
Rogério Simões.
(Homenagem póstuma ao Ti João Barbeiro da Póvoa, amigo de meu falecido pai)