As coisas são a matéria para os meus sonhos...
“As coisas são a matéria para os meus sonhos; por isso aplico uma
atençao distraidamente sobreatenta a certos detalhes do Exterior.
Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens
reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas. Porque a visão do
sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o
assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que
há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê. A realidade
verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo
que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente,
não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são
palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um
poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os
seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida
imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio,
sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm
acção, dando negro na chapa espiritual.
Em mim esta atitude, que o muito sonhar me enquistou, faz-me ver sempre
da realidade a parte que é sonho. A minha visão das coisas suprime
sempre nelas o que o meu sonho não pode utilizar. E assim vivo sempre
em sonhos, mesmo quando vivo na vida. Olhar para um poente em mim ou
para um poente no Exterior é para mim a mesma coisa, porque vejo da
mesma maneira, pois que a minha visão é talhada mesmamente.
Por isso a ideia que faço de mim é uma ideia que a muitos parecerá
errada. De certo modo é errada. Mas eu sonho-me a mim próprio e de mim
escolho o que é sonhável, compondo-me e recompondo-me de todas as
maneiras até estar bem perante o que exijo do que sou e não sou. Às
vezes o melhor modo de ver um objecto é anulá-lo; mas ele subsiste, não
sei explicar como, feito de matéria de negação e anulamento; assim faço
a grandes espaços reais do meu ser, que, suprimidos no meu quadro de
mim, me transfiguram para a minha realidade.
Como então me não engano sobre os meus íntimos processos de ilusão de
mim? Porque o processo que arranca para uma realidade mais que real um
aspecto do mundo ou uma figura de sonho, arranca também para mais que
real uma emoção ou um pensamento; despe-o portanto de todo o apetrecho
de nobre ou puro quando, o que quase sempre acontece, o não é.
Repare-se que a minha objectividade é absoluta, a mais absoluta de
todas. Eu crio o objeto”
(Do livro do desassossego Bernardino Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa)