Os anos correm (republicado)
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TEU CORPO AUSENTE
(
Jogo meus braços
Entrelaçados de nuvens.
Beijo o ar
E o travesseiro de lã.
Quebro o silêncio da cama
Num ranger de molas.
Abro náuseas de prazer
E percorro
Em volúpia arrepiante
Teu corpo ausente.
20 de Janeiro de 1974
(Todas estas fotografias foram cedidas pelo Sr. Padre Pedro da Pampilhosa da Serra) O BARBEIRO
Maria.
Espero que ao receberes esta carta estejas bem que nós por cá vamos na graça de Deus.
Recebi a tua última carta onde me dizias palavras lindas, como só tu sabes dizer, e com ela vinha a senha para levantar o cabaz das mercearias que nos mandaste pela camioneta.
Já recebemos a encomenda, estava tudo bem, mas escusavas de te incomodar.
Aqui na terra tudo vai como no costume.
A cabra da Ti Rosário entrou na horta e foi dar cabo da vinha do tê pai.
Ouvimos dizer que o Ti Chico fugiu para França. Que raio é que deu ao homem que tinha aqui tanto mato para roçar.
O Zé do fundo do lugar, coitado, é que não teve a mesma sorte. A família dele está de luto! Morreu de uma bala ao atravessar a fronteira. Mas esse, coitado, não tinha aqui nada para comer. Agora que vai ser dos filhos dele. É assim! Temos de nos conformar…
Maria! Vieram-me contar, (aqui na terra há cá umas mexeriqueiras), que estás apaixonada e que até lhe escreveste, numa carta, umas sem vergonhas.
Vê lá que eu nem queria acreditar. A TI Aninhas, que é cá uma coscuvilheira, pediu ao primo que trabalha aí em Lisboa para descobrir se era verdade.
Sabes lá: o Ti Manel da estiva, que é um magano, roubou a carta ao teu namorado.
Maria - nem sabes a vergonha por que estamos a passar. Ainda se fosses um rapaz... mas logo uma menina tão bem educada que fez a comunhão e tudo
Aproveito para te mandar uma cópia da carta que o barbeiro copiou.
Vê lá se foste tu que a escreveste, pois quero desmentir o povo.
Desculpa a letra mas o Ti António barbeiro cortou-se na navalha.
Por hoje não tenho mais para te dizer. Espero a tua resposta na volta do correio.
Beijos da tua mãe
Estes desenhos da alma foram construídos a partir de um comentário que escrevi directamente a um texto, lindo de amor, que a amiga Maria do saudoso blog “Cumplicidades” escreveu. P.S: Aos Homens grandes O António que escreveu as cartas à Maria era um homem notável: barbeiro de profissão; médico-enfermeiro nas horas vagas. António foi buscar o saber aos velhos livros de medicina, e, porque era letrado - poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever - lia e escrevia as cartas do povo que não sabia ler nem escrever. Mas o António “Barbeiro” gostava de ouvir! (Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!), E mal tarde tardasse a noite, pé ante pé como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho e de novo sintonizava a Rádio Moscovo. António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e se, no silêncio das quatro paredes, a telefonia emitisse uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não se ouvir. - Não viesse por ali algum “bufo” para o denunciar e agente da polícia política para o levar. Mas o “Barbeiro” que sabia tanto procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam. Foi assim que ouviu dizer, aos comunistas, que iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar Talvez por isso, o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia abusivamente nas entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas. Certa noite de intensa tempestade o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo! Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém! (Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena) À Maria Branco o meu agradecimento por completar este diálogo. Rogério Simões. (Homenagem póstuma ao Ti João Barbeiro da Póvoa, amigo de meu pai e que ainda conheci)